Hora de mudar
Ela cansou de ser boazinha. De ser a
perfeitinha da família.
Sozinha na sacada passou anos pensando
como seria aquele ano que estava vivendo.
E como queria estar vivendo! Tinha
pensando coisas diferentes, mas seus pensamentos sempre tão bagunçados
misturavam-se com sonhos, às vezes dela, às vezes dos outros.
Seu cabelo tão liso e loiro, sempre
tão lindo, dourados e brilhantes, chegavam à cintura porque a mãe nunca os
cortava. Apenas aparava as pontas.
Suas roupas tão claras e delicadas.
Uma delicadeza que nunca pertenceu a ela.
Diante da cômoda olhava atentamente a
tesoura que com cuidado tirara da gaveta, seus dedos tão finos e macios
deslizavam pelas lâminas que vagarosamente aproximava de seus pulsos.
Pensava se aquela ação mudaria alguma
coisa. Se encostando a lâmina em seus delicados pulsos a fim de perder todo
sangue suficiente para mantê-la viva, encontraria certezas que há tempo
procurava.
E percebeu que tirar a vida que nunca
foi dela não iria lhe trazer felicidade.
Foi então que ao invés dos pulsos a
tesoura tocou seus cabelos que em fração de segundos forraram o tapete persa do
seu quarto. Pedaços de suas roupas começaram a fazer companhia para as madeixas
que estavam no chão.
Pensava como sua mãe reagiria ao ver a
filhinha tão perfeita transformada em algo que ela sempre julgou imperfeito.
Cabelos curtos, roupas rasgadas, ria sozinha um riso baixinho ao pensar na cara
da pavor de sua mãe e na ira de seu pai.
Sua mãe certamente iria dramatizar
dizendo que sua filha morreu.
Ela estaria enganada.
Morrer ou mudar?
Ela escolheu mudar e viver.
A sede dela está maior.
Quer mais e muito! Muito mais do que o
mundo pode dar.
Pensou em se mudar, de cidade, de
estado, de pais, de planeta.
Lutou contra vontades próprias para
atender as vontades dos outros.
Mas cresceu e hoje decide por ela
mesma.
Só ela sabe o que é melhor para ela.
Ou não sabe.
Pode ser que um dia saiba.
Mas se ela não sabe, ninguém mais sabe
e é isso que importa.
* * *
Sentado na praça, ele não sabia para onde
ir, o que seguir.
A figura de pai que é tão importante
para um filho sempre fez falta para ele.
Pensava se estava fazendo o certo,
seguindo o certo. Mas nem pensar conseguia.
Há meses que se dedicava a uma vaga
que nem sabia se o faria feliz.
Como tudo que escolhera até então.
O mundo tão louco e bagunçado ajudou a
bagunçar a sua vida também.
Escolher aquele curso talvez não tenha
sido a melhor opção mesmo.
Talvez seguir a carreira artística,
sendo um palhaço profissional, faria com que fosse um homem realizado e feliz.
Que engraçado, sem ser profissional a
vida o fez de palhaço algumas vezes, mas isso não o deixou feliz.
Ser traído pela namorada, aquela que
tanto confiou, o transformou em um homem desacreditado e amargurado.
Incapacitado de ver beleza ao seu redor.
Como ela pode fazer isso com ele? Logo
com ele que dedicou todos os esforços a ela, abriu mão da família, dos amigos,
até mesmo da Lilica sua cadelinha de estimação.
É, talvez não devesse ter deixado
tantas coisas de lado.
Talvez devesse ter se amado em
primeiro lugar para depois amar alguém.
Mas agora a coisa que mais foge é amar
alguém.
Prometeu que não mais se apaixonaria.
Olhava os pombos e pensava: É talvez
eu devesse ter nascido pombo, pelo menos não precisaria usar terno e gravata
todos os dias.
Comprou um saquinho de pipoca e
começou a jogar aos pássaros, alimentá-los o deixava mais tranquilo.
Pelo menos nessa hora nada mais tirava
sua atenção.
*
* *
Ela agora com os cabelos curtos e respirando
liberdade da sacada olhava aquele belo homem dando comida aos pássaros e sentiu
pela primeira vez uma palpitação em seu peito. Uma excitação que jamais
conhecera.
Percebeu que perdeu
muito tempo vivendo uma vida que não era dela, guardando uma pureza que não lhe
pertencia.
Nem mesmo um beijo tinha provado até
então.
E foi aí que a ousadia tomou conta de
si e pegando um pedaço de pão decidiu ir dar comida aos pombos e se juntar
aquele belo homem, antes que sua mãe chegasse e tivesse um ataque de nervos, ao
ver sua bela filha transformada sim, mas muito feliz também!
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